Quando o Inimigo se Torna Irmão: Graça em Meio à História e à Cegueira

Assisti recentemente ao filme Raça e Redenção, baseado em fatos reais. Ele narra o processo de integração racial em uma cidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, durante os anos 1970. No centro da trama estão dois personagens improváveis: Ann Atwater, uma mulher preta, ativista dos direitos civis, e C.P. Ellis, o presidente local da Ku Klux Klan.

O que mais me impactou não foi apenas o retrato cru do racismo americano, sem disfarces nem amenizações, mas o contraste entre a crueldade do sistema e a graça que rompeu suas amarras.
Ellis é apresentado como o inimigo. Mas, à medida que o filme avança, vemos um homem moldado por um contexto social, cultural e religioso que alimentava o medo, o orgulho e a ignorância. É fácil demonizá-lo — e ele merece condenação por seus atos —, mas algo acontece quando a história o humaniza: o ódio dá lugar à compreensão de que há ali um pecador cativo, tão necessitado de redenção quanto qualquer outro.


A pergunta que desmascara as gerações

Ver Ellis me fez lembrar de uma pergunta perturbadora de John Piper, em seu livro Racismo:

“O que nós, cristãos de hoje, estamos fazendo que, daqui a trezentos anos, será visto como o racismo cristão é visto hoje?”

Essa pergunta me assombra — e deveria assombrar toda a igreja.
Porque o racismo “cristão” do passado não foi apenas fruto de ignorância, mas de cegueira espiritual. Homens e mulheres que citavam as Escrituras, cantavam hinos e frequentavam cultos, conseguiam ao mesmo tempo justificar a escravidão e a segregação.
Eles liam a Bíblia e não viam o Cristo que derrubou o muro de separação entre judeus e gentios (Ef 2.14). E isso nos mostra algo terrível: é possível ter ortodoxia teológica e ainda assim negar o evangelho na prática do amor.


Cegueiras de hoje: o que ainda não enxergamos

Talvez o nosso “absurdo” contemporâneo não seja o racismo declarado, mas outras formas sutis de desumanização.
Pode estar na nossa indiferença diante da pobreza estrutural, no consumismo travestido de bênção, na apatia em relação ao sofrimento global, ou até na forma como usamos as redes para construir um “cristianismo de vitrine”, sem cruz e sem compaixão.

E talvez — para nosso desconforto — esteja também na maneira como tratamos pessoas que vivem em pecados que nos escandalizam, mas não nos atingem diretamente.
Tomemos como exemplo a homoafetividade. A Escritura é clara em classificá-la como pecado (Rm 1.26–27), mas a igreja contemporânea, muitas vezes, tem tratado os homossexuais como se fossem pecadores de uma categoria à parte, indignos de misericórdia ou de acolhimento.
Esse erro não é doutrinário, é pastoral e moral — é a incapacidade de distinguir entre reprovar o pecado e rejeitar o pecador.
Jesus nunca chamou o pecado de virtude, mas também nunca virou o rosto diante do pecador arrependido. E é justamente isso que expõe nossa cegueira: podemos estar certos na teologia, mas errados no amor.


Graça que reconcilia inimigos

O que redime a história de Raça e Redenção é que a graça vence. Ann Atwater e C.P. Ellis, antes inimigos, tornam-se amigos.
Não por um acordo político, mas por transformação do coração.
Ellis abandona a Klan, perde seus privilégios e ganha algo infinitamente maior: uma nova humanidade.

O evangelho faz exatamente isso. Ele não apenas perdoa, mas recria. Ele toma o ódio que divide e o transforma em fraternidade. Ele pega Saulos e os torna Paulos.
Ele faz de inimigos — tanto de Deus quanto uns dos outros — uma só família em Cristo.


A graça que nos impede de esquecer

A graça não nos permite olhar para racistas, corruptos, homossexuais ou qualquer outro grupo com desprezo, mas com temor e compaixão. Pois todos nós, sem exceção, estávamos “mortos em nossos delitos e pecados” (Ef 2.1).
Quando compreendemos isso, não há espaço para a superioridade moral — só para a gratidão.

A graça não justifica o pecado, mas nos impede de esquecer que só estamos de pé porque fomos alcançados por misericórdia.
E talvez seja justamente isso que precisamos redescobrir:
a graça que não apenas salva indivíduos, mas reconcilia inimigos e transforma sociedades.

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